quinta-feira, maio 29, 2003

 
e concluindo. (Agora sim!...)

* * *

- Mas e então. – principiou Jet, no caminho pra casa. Estava tão feliz de não ter que carregar aquele peso todo na volta, que nem reclamou de ir a pé. Sabia que ia chegar muito tarde em casa, e que ia levar esporro, mas apreciou a oportunidade de conversar mais demoradamente no caminho. – Por que você voltou?
- Voltei? – retrucou Tao.
- Naquele dia, com o Bil.
Tao levou algum tempo traçando a pergunta até a origem.
- Ah. Moe te contou.
- É.
- Não consegue ficar calado. Depois dum chope, então...
- Não foge do assunto.
- Não vou fugir. – coçou o cavanhaque, levemente pensativo. – Cê conhece a estória do Street?
- Conheço.
- Jura?
- Tu vai me falar do Ryu, não é?
- E do Ken também, é claro.
- Que tem o Ken?
- Que tem o Ken? São dois protagonistas, cara. Nenhum dos dois é o principal sozinho, saca?
- Não.
- Hm. Como é que eu vou dizer isso... São os dois caminhos mais clássicos da arte marcial, sabe? Um o guerreiro perfeito, dedica cada instante a ser o melhor do mundo; o outro. Porra, sei lá como dizer isso. O outro não.
- Quer dizer que um é um bosta e o outro é foda.
- Não quer dizer nada disso. Olha, quando a gente se conheceu, cê disse que jogava só porque gostava, que treinaria porque gosta. Se eu te pergunto de novo, agora, cê não responde a mesma coisa.
- Ué, e tu agora sabe o que eu respondo?
- Sei sim. Tá na tua cara.
- Tá nada!
- Então tá bom. Porque você tá aprendendo a jogar comigo?
- Porque gosto.
- Que mentira!
- Não é mentira porra nen –
- Mentira sim! Você acha um saco jogar comigo, odeia ficar dando shoryuken pela tela, treinando defesa, como é, vai dizer que é legal?
- Ah, mas é necessário.
- Necessário? Necessário pra quê?
- Pra melhorar, ué? Se nem tu sab –
- Melhorar pra quê?
- Ora, pra...
- Sim?
Jet deteve-se no meio da calçada. Estavam na altura da Glória, e súbito deu-se conta do quão deserta já estava a rua àquelas horas, e do quanto as velhas paredes pareciam-lhe agourentas e sombrias depois do escurecer. Nunca tinha passado das 10 naquelas partes da cidade.
- Pra ser o melhor? Não é essa a idéia.
Tao riu e seguiu seu caminho, sem virar-se para falar.
- Espero que tu não tenha dito isso pro Moe, ele ia morrer de rir da sua cara.
- Nem riu!
- Da sua cara não quer dizer na sua cara, mané. O melhor, puta merda... tem umas que eu ouço que são comédia, são tragédia, tudo ao mesmo tempo, parece brincadeira.
- Você mesmo já disse isso! O Moe me falou!
- Por isso mesmo. Eu disse isso e era um idiota. Quer saber o que houve naquele dia, quando eu voltei, mesmo sem conseguir entender o que o Bil disse? Vou te dizer o que houve. Foi o seguinte.

* * *

“Eu chego lá no dia seguinte, entro e Bil e Moe já tavam lá. Bate um silêncio sepulcral no que eu ponho o pé lá dentro, só tem os dois e o dono porque, afinal de contas, não era nem bem 10 da manhã e só mesmo louco jogava cedo assim.
Ninguém me disse nada, os dois estavam duelando e a duelar continuaram, como se eu nem tivesse entrado. Era duelo, mesmo, não treinamento. Peguei uma ficha e cheguei perto pra ver o Moe perdendo – é claro que ele perdeu, aliás, nem me lembro se foi perfect ou não, mas eu logo estranhei porque ele estava jogando com o Dhalsim. Até lá ele sempre pegava o Ken ou o Ryu, porra, todo mundo pegava, até eu e o Bil jogávamos com eles, porra você joga com o Ken em tudo que é jogo até hoje!
Aquela história: nada mais básico e equilibrado que um dos dois. Não é muito rápido mas não é lerdo, não salta muito alto mas tem lá sua altura, uma rasteira boazinha, chute fraco matador no ar e no chão, bons arremessos, chute forte com prioridade absurda, excelente ataque à distância e o melhor antiaéreo, com a vantagem de não ter que carregar. Ainda por cima naquela época, como os dois eram iguaizinhos, e não podia usar personagem repetido, quem jogasse com um deles era o único que não corria o risco de ficar sem poder usar o seu lutador preferido – se o seu oponente é o Ken, jogue com o Ryu e vai dar na mesma. Agora o Dhalsim, ele era um bundão. Lerdo feito uma lesma, sem nenhum antiaéreo, uma magia meio lentinha...
Quando fui jogar o Bil, que tava com o Ryu, imediatamente me ofereceu o lugar dele, passando minha ficha pro Moe. Eu não ousei dizer nada – não faça essa cara. Se você conhecesse o Bil, também não ousaria.
Bom. Estava eu lá feliz da vida por ter arrebentado o Moe no dia anterior, louco pra ter uma revanche contra o Bil e, nos meus sonhos malucos, quem sabe, acabar com a raça dele. Um idiota, como eu disse.
O Moe não precisou de 3 segundos pra me arrebentar a cara. Descobriu que podia fintar meu shoryuken com o torpedo, a magia com a rasteira, eu imbecil não soube inventar nada, me arrebentei todo e nunca mais esqueci. O Moe em meia hora tinha desenvolvido uma estratégia pra me destruir, apesar deu ter passado dias pra construir ela. Depois eu consegui ganhar dele de novo, em teoria nem foi grande coisa perder, mas. Sei lá, tem coisa que você não esquece – agora, muito pior que isso.
Já te falei que fui ao Japão, não é? Pois então. Eu passei uns apertos por lá, superei, consegui um punhado de títulos de campeão... Você achou que eu não tinha nenhum? Pois eu tenho. Grandes merdas, também, nem é no meu nome verdadeiro, eu era ilegal lá. Imigrante ilegal, Jet, o que você esperava? Eu tinha pouco mais de 15 anos. Bom, foda-se.
Voltei pro Brasil achando que era o melhor do mundo. Calaboca, Jet, deixa eu falar! Que mané melhor do mundo o quê! Deixa de pelar meu saco e escuta. Título oficial de campeonato não vale nada nem aqui, nem lá, nem em lugar nenhum, isso até eu já sabia. Mas mais importante que eles, eu tinha tido vitórias realmente, realmente importantes.
Quando eu voltei pra cá já tinha meus 18 anos, então tratei de tentar arranjar um emprego e um lugar pra ficar, que foi numa loja que vendia jogo. Aí um belo dia o Moe entra na loja atrás de Street Alpha 2, porque era o jogo que tava na moda em 96. Então foi aquela coisa: "porra, Marcelo, fala, como cê vai cara, fazendo o que da vida?", "nem sabe, tô trabalhando naquele fliper velho onde a gente jogava, o seu Alfredo me chamou", "que legal", e tal. "Passa lá dia desses, aliás, passa lá mais tarde hoje, que horas cê sai", etc., etc.
Então ótimo, largando o serviço, fui pra lá feliz da vida - mas não porque estava feliz de rever o meu amigo, não porque queria bater um papo e matar as saudades. As lembranças de minhas derrotas aqui tinham me subido à cabeça, e agora que eu tinha acabado de voltar tinha me tornado muito, muito melhor do que antes. Moe não devia ser mais nem sombra perto de mim: eu tinha passado a última meia dúzia de anos só jogando, enquanto ele tava preocupado em passar pra faculdade, arranjar estágio e o escambau. Ora, é lógico que ele é formado! Administração. Acho que ele é quase Mestre. Não é isso, é o sujeito que faz mestrado, já ouviu falar? Porra, como não?! Ah, foda-se. O que importa é que além de tudo ele pelo visto só tava pegando no Alpha 2 agora, não ia saber nada do jogo, enquanto eu já estava testando ele pra Capcom um ano antes.
Chegando lá eu até conversei com o Moe, mas não consegui disfarçar que queria mesmo era jogar. Acho que ele também tinha lá sua vontade, então fomos. Cara, como eu tava enganado.
Assim que começou a luta deu pra saber que o Moe não era novato naquele jogo. Você sabe, a maioria das pessoas inexperientes com uma máquina começa uma luta ou recuando ou saltitando feito um babaca, às vezes as duas coisas. Um mais experiente começa ou com uma estratégia preparada, ou espera o outro agir – se bem que isso também é uma estratégia preparada, se você for pensar. Mas o que interessa é que ele não fez nada disso, só se teleportou pra longe, exatamente pra distância de onde podia me acertar.
Pra dizer a verdade, saí do Brasil cedo pra burro e nem lembro se já tinha visto o Moe jogando qualquer coisa do Street Turbo em diante, que foi a partir daí que o Dhalsim começou a teleportar. Mas de todo jeito não me lembrava de ter visto alguém teleportar tão bem quanto o Moe... Você já viu ele jogando aqui, sabe como ele tem noção de distância, tá sempre onde quer, e isso com um Dhalsim incrivelmente lerdo. Ele no Alpha é um absurdo, enquanto não consegue ficar na distância ele simplesmente continua teleportando, não pára quieto! Se você manda uma magia, ele teleporta ao invés de saltar. Se parte pra cima dele, teleporta pro outro lado, bem longe. Ele nunca fica preso num canto, nunca fica perto de você muito tempo... enfim, é um inferno.
Pois bem, ele começou teleportando e eu rapidamente dei um dash pra trás, pra sair da distância dele e ficar na altura do Hadouken, onde o meu Ryu seria invencível. Ele por sua vez não era burro e assim que mandei a magia teleportou de novo e ficou na distância certa, ainda por cima mandando uma magia também, que eu tive de defender porque me pegou muito no susto. Quando pude me mexer de novo, ele tava pulando na minha direção.
Lógico que a única coisa que pensei foi ‘que imbecil, pulando pra cima de mim com o Dhalsim!’ E shoryuken nele. Muita burrice: não lembrava que no Alpha o Dhalsim teleportava no ar. Quando fui ver meu shoryuken tava passando em branco, e o Moe ali no chão só esperando a hora em que ia me enfiar a porrada. Yoga Flame em mim pra eu aprender o que é bom, caio, levanto, ele já ta longe de novo.
Nessa altura eu já tava ficando mais esperto, me liguei que não podia confiar na magia e fui pra cima. Da primeira vez pulei cedo demais e engoli chute forte. Da segunda acertei o timing e rebati o chute com meu fraco, caindo triunfante na frente dele feliz da vida por ter arrancado um naco milimétrico de vida dele. Emendei com qualquer porcaria assim que cheguei ao chão, mas aí é que a coisa se revelou pra mim: ele conseguiu defender. Eu tinha errado o combo. Tava nervoso, ele tinha me pego desprevenido e agora eu tava nervoso com isso. O Dhalsim sumiu e apareceu longe antes que eu tivesse a chance de atacar de novo, o que me fez repetir a estratégia, dessa vez saltitando feito um canguru – eu disse que estava nervoso; ele passou por baixo com uma rasteira muito antes e me arremessou quando eu cheguei no chão.
Daí em diante foi festa, porque ele tinha me posto no canto e eu não consegui mais sair. Eu levantava engolindo magia e o porra do Ryu num tinha esquiva. Aí quando eu pensava em revidar com a minha magia levava um chute na cara, quando ele pulava, eu mandava shoryuken e errava, se eu tentava sair do canto, Yoga Flame... só acertei mais um shoryuken e uma rasteira em dois erros dele que não provoquei. O round era dele e, do jeito que andava, a luta também seria.
Round 2. Meu nocaute e o pequeno intervalo de alguns segundos entre os rounds tinham me dado tempo pra pensar, mas não muito. Qual era o defeito do Dhalsim? Velocidade. Como tirar vantagem? Recuei enquanto pensava, mandando umas magias, mantendo ele longe, enquanto ele continuava se teleportando para manter-se na distância do chute. Por reflexo, continuei atirando, atirando, e até demorei a reparar que isso impedia que ele parasse tempo o bastante para me chutar, ou muito melhor, o tempo pra que eu partisse pra cima dele.
Percebi isso e emendei o Hadouken com um pulo na direção dele, dum jeito que, assim que ele saiu do teleporte, recebeu meu pé na cara. Daí foi minha vez de fazer a festa, porque tinha descoberto um jeito de anular a distância do Dhalsim, a grande vantagem do Moe, e grudei nele. Além disso logo percebi que, mesmo executado com maestria, o teleporte é um golpe de comando complicado e execução lenta, e se eu martelasse em cima dele sem pular em momento nenhum ele não teria tempo de fazê-lo. Por isso emendava magia fraca com combo no chão, de preferência finalizando no shoryuken, e ele só escapou de mim uma vez, quando pulei meio sem querer e dei tempo pro teleporte.
O segundo round era meu, e agora tinha certeza de que a luta também seria, e isso tinha me aliviado paca, porque do jeito que as coisas tavam antes tava insuportável. Respirei fundo, olhei pro lado na esperança de achar algum desespero no Moe – e nada, ele parecia que tava vendo televisão numa tarde de domingo.
Ele ainda tinha uma carta na manga, eu devia ter imaginado. Quando começou o round, ao invés de tomar qualquer atitude que eu pudesse esperar, ele deu um dash na minha direção e veio pro braço. Sabe, o Dhalsim não tem golpes ruins de perto, o único motivo pelo qual quem joga com ele nunca usa eles é que, como ele é lerdo, não dá pra aproximar fácil. Só que, com aquele pequeno saltinho no começo da luta, ele tinha anulado a distância e pôde transformar um duelo sofisticado numa troca de tapas.
Era uma jogada desesperada, eu sei, mas melhor do que a vantagem que eu estava levando antes e, muito mais que isso, uma jogada que ele tinha feito em cima do meu estilo de jogo: o Moe sabia que minha estratégia toda é baseada em reação, que eu nunca começo atacando, e por isso deu aquela corrida. Se fosse outro, ele não arriscaria, mas comigo, aquilo não só diminuiu a distância entre os personagens, mas acabou com meu esquema de jogo, destruiu minha guarda de contra-ataque – e não fez isso pela técnica, mas porque aquele estilo de jogo me irrita, porque eu tenho dificuldade pra reagir a ele. Fico pulando e batendo no controle à toa, esqueço de tentar recuperar a guarda, faço um erro e insisto nele.
Mesmo assim a luta foi dura, e estávamos quase empatados quando eu finalmente consegui me desgrudar do Moe arremessando ele longe. Ele caiu na distância da minha magia, mas eu errei o tempo e ela passou antes dele levantar, e com isso ele me chutou a cara de novo. Fiquei tão puto que demorei a reagir, e com isso ele deu um outro dash pra parar na minha frente. Reagi com outro hadouken simplesmente porque já não sabia mais o que tava fazendo, e ele pulou e me matou com um torpedo.
Eu tinha perdido. Tinha viajado o mundo todo e enfiado a porrada em um número infinito de viciados, só pra voltar pra casa e perder pro meu amigo da escola, igualzinho ao que tinha acontecido anos antes, quando ainda era moleque.”

* * *

- E daí? – perguntou Jet, ao fim do relato.
- Daí o que?
- Daí qual é a moral dessa merda toda?
- Moral? Eu agora tenho que te explicar tudo, é?
- Então o que isso tem a ver com o Ryu e o Ken?
- Você nunca zerou o Alpha 2 com o Ken, não?
- Zerei, claro.
- Num lembra do final, de quem é o último chefe?
- O Ryu. O Ken dá uma surra nele, entrega a faixa vermelha que o Ryu passa a usar.
Tao levantou o braço, mostrando a pulseira de madeira que portava, semelhante a que Ryu tinha no seriado.
- Quem você acha que usava isso antes de mim?
Jet fitou a pulseira com nova reverência, enquanto murmurava:
- Maneiro...
- Também acho. Eu nunca esqueceria daquele dia de todo jeito, mas enquanto usar isso, aí é que não esqueço mesmo.
- Saquei... – Jet meditou a respeito por alguns segundos antes de continuar. – Mas então, que quer dizer isso tudo?
- Não posso te responder a tudo, mas vou dar uma ajuda... quem realmente estava me enfrentando naquele dia?
- Como assim?
- Eu não perdi por causa da estratégia do Moe, perdi por causa dos meus erros. No fundo, é sempre por isso que a gente perde.
- Moral velha. Somos nossos piores inimigos... coisa de John Woo.
- Mais velha que isso. “Somos prisioneiros de nós mesmos”.
- Isso é do Lao-Tse, não é?
- Atribuem a ele, mas ninguém sabe ao certo. Tá aprendendo.
- Acho que sim. Nós somos imperfeitos, sempre seremos imperfeitos, sempre cometeremos erros e, por isso, sempre vai ter alguém que possa nos derrotar.
- Por isso nunca vai existir “o” melhor.
- Então porque lutar?
- Pensei que você gostasse de videogame.
- Gosto. Mas...
- “Aquele que vence aos outros é forte, mas aquele que vence a si mesmo é que é o realmente forte”. Até porque, não existe uma vitória que não seja sobre você mesmo: onde quer que você vá, pra onde quer que olhe, seus erros vão se refletir lá, e você vai se bater com eles. Até porque no fundo gosta, mais ainda, precisa disso, é o que te faz inteiro, é o que te faz satisfeito, mais que tudo isso, é o que te faz uma pessoa melhor a cada dia que passa. Não é o melhor de todos, porque o melhor de todos tem que ser melhor pros outros, o melhor a cada dia que passa faz por si próprio, pela sua própria satisfação.
- Isso não é egocentrismo, não?
- Isso é o Caminho. Ele não leva só a você mesmo, leva a tudo que existe, porque no fundo tudo é uma coisa só.
- Amém, padre.
- Vá zoar a sua vó, seu pirralho de merda.
- Opa, minha casa.
- Amanhã às 10?
- Amanhã às 10 é o meu recreio.
- Ah, escola, a tragédia da vida das criancinhas. 2 da tarde então.
- Feito.
- Até lá.

* * *

posted by Heitor 8:52 PM
quarta-feira, maio 28, 2003

 
dando continuidade.

* * *

- De novo. – repetiu Bil, friamente.
Henrique já não agüentava mais. Achava a idéia de desperdiçar fichas insuportável e tinha acabado de gastar 34 delas – junto com uma boa parcela de sua mesada – para ficar mandando shoryuken de um lado pro outro da tela enquanto Bil se desviava, até o tempo acabar. O dono da loja sorria de orelha a orelha.
Já tinha parado de contar quantos conseguia fazer há muito tempo, já nem se importava mais, já nem achava graça nenhuma. Marcelo, que antes a tudo observava com distante respeito, tinha dormido no processo.
Em dado momento, antes que o outro se desse conta, Bil pulou na sua direção ao invés de recuar do shoryuken, desferindo-lhe uma voadora seguida de um combo matador.
- Ei! O que foi que – Henrique começou a protestar, mas foi interrompido por um leve tapa na nuca.
- Fica esperto, rapá.
- Mas você –
- Fica esperto.
- Mas eu –
Sem dizer mais nada, Bil mais uma vez fez seu lutador saltar na direção do oponente, desta vez acertando-lhe com um exemplar do famoso shoryuken 4 tempos (voadora, soco, shoryuken) que sugou o que restava de sua barra de energia.
- Falei pra ficar esperto.
- Porra, que cê queria que eu fizesse?
- Ah, não sei. Que eu queria que você fizesse, hein? – Bil parou por um pequeno instante, mas logo prosseguiu ele mesmo. – Que que você fez esse tempo todo?
- Desperdicei meu dinheiro.
- Não desperdiçou, não. Guentaí.
Virou-se e foi sacudir Marcelo, que acordou num salto – Bil era o tipo de pessoa que assustava. Era alto e largo, apesar de não ser lá extremamente forte, mas tinha um rosto chapado, a testa enrugada como se estivesse franzida, a boca estranhamente retorcida para dentro, e seus olhos, negros como sua pele, eram perfurantes, de maneira que ele parecia estar sempre de mal-humor ou desconfiado. Na verdade, à primeira vista todo mundo morria de medo dele, e inclusive tanto Henrique quanto Marcelo tiveram que tomar muita coragem pra se aproximar. Mas embora não fosse lá nenhum poço de alegria, Bil tinha sua jovialidade, um humor estranho que ficava em algum lugar entre a gargalhada e o sorriso irônico, sem referência direta a nenhum dos dois.
Voltou com Marcelo quase que pendurado pelo pescoço e colocou-o de frente pro joystick.
- Vai lá, fio. Ganha do Henrique aí.
- Tenho que pagar a ficha?
- Tem.
- Então não –
- Calaboca e joga!
Dito e feito, Marcelo virou-se pra Henrique, deu com os ombros, e saltou com seu Ken pra cima do Ryu dele. Mas dessa vez Ryu, antes que seu controlador se desse conta, respondeu ao salto com um shoryuken.
Marcelo pareceu surpreso, tentou de novo e levou outro golpe idêntico. Vendo-se sem alternativa, usou uma magia, que seu adversário defendeu. Com medo de saltar, lançou outra, e outra, até que Ryu pulou por cima do projétil e acertou-lhe um chute e uma rasteira, afastando-se um pouco em seguida, e permanecendo à meia distância. Ken arriscou uma giratória – respondida com novo shoryuken; e logo Marcelo viu-se sem nenhuma ação que não resultasse em seu espancamento, conseguindo no máximo acertar uma rasteira de sorte antes de ser vergonhosamente derrotado.
- Filho da puta! – berrou Marcelo, que tinha crescido em raiva ao longo da luta. – Dessa vez eu tava com sono, mas tem volta!
- Pode vir! Vai apanhar de novo! – e virando-se para Bil, completou. – Mandei bem, hein?
- Ô.
- Esse teu treinamento é foda!
- Ah, é.
Marcelo saiu até o balcão e retornou com outra ficha, colocando-a na máquina, mas assim que ele posicionou-se para jogar, Bil o empurrou pro lado e assumiu seu lugar.
- Ei, que porra é essa!
- Fica quieto aí.
- Mas a minha fi –
- Quieto.
A luta começou e os dois recuaram – o que já era surpresa. Afinal, em todas as vezes anteriores em que enfrentaram Bil, tanto Henrique quanto Marcelo haviam começado apanhando de cara. Alguma coisa estava diferente.
Durante muito tempo os dois bonecos não se moveram. Foi necessária uma magia do Ken de Bil para que a luta de fato começasse, embora Henrique não pudesse evitar a sensação de que ela, de alguma outra forma, já se transcorria desde antes, enquanto ambos se estudavam.
Ryu saltou por sobre o projétil, e brevemente retornou o impasse. Mas em seguida Ken lançou outro, e outro e outro e mais outro; Ryu saltou os dois primeiros mas logo entendeu que estava caindo em uma pegadinha, e, temeroso de perder sua recém-adquirida e valiosa guarda, Henrique tentou revidar do chão, com novo projétil.
As duas magias chocaram-se, de novo e de novo e de novo, destruindo-se no processo, mas aproximando-se cada vez mais perigosamente de Ryu; e não só elas, mas acompanhando-os, um pequeno passo mais perto a cada projétil que lançava, estava o Ken de Bil. E era impressionante como ele fazia rápido o movimento de quarto-de-lua, e como o fazia de maneira calma, coordenada, calculada, enquanto Henrique já estava quase saltando de desespero.
Dado momento ficou evidente que seria impossível rebater a magia seguinte, e Ryu pulou – um grave erro, pois não havia mais projétil nenhum para ser evitado. Ken havia saltado junto dele. Por reflexo, Henrique ainda desferiu um chute forte no ar, mas Bil não só havia sido mais rápido, estando agora por sobre ele, como também desferia um chute fraco, mais rápido e com maior prioridade.
Ryu foi atingido e caiu, ainda que em pé, mas agora com Ken a dois passos de distância e movendo-se para frente e para trás rapidamente.
- E agora, hein, e agora? – indagou Bil falsamente frenético, como quem brinca com um bebê. – Tô aqui! Que cê vai fazer, que cê vai? Hein? Hein? Faz alguma coisa.
Súbito, Ken colou em Ryu, que desferiu um soco direto novamente por reflexo, defendido por seu oponente. Bil riu, da maneira mais natural que já o haviam visto rir, e saltou.
Henrique, como antes, nem percebeu que executou um shoryuken, mas mesmo se percebesse, teria desferido da mesma forma, pois parecia o mais sensato a se fazer. Não era: a força do soco defendido, somado a um pequeno recuo de Bil, tinham colocado o Ken dele muito mais distante do que parecia, distante o bastante para escapar do shoryuken com alguma folga.
Quando Ryu chegou ao chão foi recepcionado com um combo triplo que lhe arrancou metade da energia e o tonteou, apenas para ao levantar, incapaz de reagir, ser finalizado por um shoryuken 4 tempos.
O segundo round seguiu de maneira semelhante, porém mais direta: Ryu foi logo induzido a errar seu shoryuken e sofreu represália instantânea, perdendo rapidamente.
Henrique foi até a parede e chutou a lata de lixo, visivelmente irritado.
- Calma, moleque. – pediu Bil, abandonando os controles nas mãos de um Marcelo satisfeito. – Até parece que tu nunca perdeu na vida! Cê mandou bem.
- Mandei bem o caralho! Tu me arrebentou!
- Eu sempre te arrebento.
- É, mas o treino, e eu tava mandando bem e –
- Quantas vezes cê acha que eu já não fiz esse treino, mané?
Henrique deteve-se em súbita compreensão.
- Tu ainda tem muito chão pra andar – Bil prosseguiu. - Tem que aprender a mandar magia direito, tem que aprender a mandar finta, a escapar de finta, e depois ainda vai ter que pegar tudo isso e inventar alguma coisa tua. Mas tu chega lá. Já teve um bom começo. Melhor que esse imprestável aí – apontou pra Marcelo.
- Mas eu. Eu. Porra, eu nunca vou ser tão bom quanto você! Você vai estar sempre na frente!
- E daí?
- Daí que eu nunca vou ser o melhor! Então pra que treinar? Pra que lutar?
- É isso?
- Hein?
Bil nunca tinha tido o rosto tão severo antes.
- Você quer aprender essa porra só pra ser melhor que eu?
- Pra ser melhor que todo mundo!
- Tu é um merda, então.
Henrique pensou não ter ouvido direito.
- Hã?
- Tu é um merda. Sempre tem alguém melhor, nem que seja só na tua cabeça.
Bil principiou em direção a porta, mas antes de sair, completou:
- Amanhã vou voltar aqui, e se tu não conseguir entender pelo menos isso, nem pensa em aparecer.

* * *

Tinha sido um bom mini-campeonato. Tao havia ganhado, é claro, mas Jet estava feliz assim mesmo: tinha ido bem, chegado às quartas de final e perdido para Marcelo – o verdadeiro nome de Moe, como tinha descoberto – por muito pouco. Na final, previsivelmente, os dois se enfrentaram, e Tao venceu com dificuldade.
Foi um duelo maravilhoso: Moe tinha uma maneira curiosa de jogar, e apesar de utilizar o Dhalsim, que todo mundo sabia ser mais fraco nas primeiras versões de Street, tinha um jogo de meia distância praticamente impossível de se quebrar.
Ao contrário de Tao, ele não esperava pelo adversário – mas também era sábio o bastante para manter-se longe de seu alcance. Jet jamais tinha testemunhado alguém com um controle de sua distância tão hábil: Moe estava sempre, sempre na distância exata pra enfiar o pé na cara do sujeito, e freqüentemente o fazia sem aviso. Seu passatempo favorito era encher o saco do oponente com bandos de golpes variados a uma distância segura, até que ele ou caísse, ou viesse pra cima, o que geralmente gerava como resposta um Yoga Flame providencial ou um arremesso.
Quando o enfrentou, Jet até conseguiu entrar na sua distância e dar muito trabalho, mas acabou vencido. Já Tao não se preocupou: usou o Hadouken de seu Ryu para atacar muito de longe.
Aí é que morou toda a beleza do duelo: pois Moe tinha certeza de que Tao faria isso, e Tao tinha certeza que Moe aproveitaria as brechas que o uso da magia causavam na guarda para atacar. Então o que houve foi um duelo emocionante de fintas aéreas e rasteiras, enquanto Moe tentava perfurar a guarda através da barreira de magias, e Tao esperava o momento para contra-atacar. O lance final foi o ápice: os dois tinham muito pouca energia, Tao um pouquinho mais, Moe usou uma rasteira para passar por baixo do Hadouken e derrubar Ryu, mandando em seguida um Yoga Flame que acertaria em cheio quando ele levantasse – só que Tao surpreendeu com um arriscado Rising Dragon (este é o Shoryuken executado no instante em que o personagem se levanta, de maneira que a animação é pulada) e passou por dentro das chamas, derrubando Dhalsim e vencendo tanto a luta quanto o campeonato.
Tao parou um pouco pra comemorar mas depois continuou jogando, enquanto Jet e Moe foram beber alguma coisa no boteco do lado – o primeiro uma Coca, o outro um chope. Jet não conseguiu evitar perguntar sobre o misterioso Bil. E Moe, que era muito mais falastrão que seu companheiro (especialmente depois do chope), logo lhe contou tudo sobre como ele e seu velho amigo de infância Henrique, ou Tao, conheceram um estranho de nome Bil naquele mesmo fliperama, que humilhou a ambos no Street, e de como ele começou a ensiná-los a jogar direito.
- Mas ele voltou, então. – concluiu Jet, assim que Moe terminou sua longa história.
- Quem?
- Tao. Henrique. Ele voltou no dia seguinte, não é?
- Lógico.
- Por quê?
- Como é que eu vou saber? – Moe deu com os ombros.
- Cê não sabe?
- Ele nunca explica essas coisas, desde pequenininho.
- Tá brincando. – Jet suspirou, mirando o copo de Coca-Cola. – Mas e você?
- Eu o quê?
- Você também continuou jogando. Por quê?
- Por que o quê?
- Por que cê joga? Pra quê?
- Eu jogo porque eu gosto.
- Só?
- Só?! – Moe apertou os olhos. – Cê acha pouco?
- Acho.
- Então teu papo não é comigo. Quem viajou o mundo buscando iluminação através de videogame foi o Tao, e se quer saber minha opinião acho que ele é maluco. Mas é problema dele, e além do mais o cara pode. Nunca vi ninguém jogar que nem ele.
- E daí? Você quase ganhou dele! Além do mais, ele nunca consegue nada, não ganha dinheiro, ninguém conhece ele... e ele é o melhor do mundo! Não é justo!
- Ah, é justo, sim. É justo.
- É merda nenhuma.
- Você joga muito, conhece a estória do Street?
- Conheço mais ou menos. Boba.
- Boba?
- Tem um mutante amazônico verde que dá choque e um indiano que se estica, só pra começar.
- Faz sentido. Mas esqueça o mutante.
- E o indiano? E a bicha de máscara que luta ninjitsu espanhol?
- Ninjutsu. Esqueça esses idiotas. O tema central é outro.
- Um cara que vai vingar o amigo morto? Grande merda.
- Amigo morto? De quem cê tá falando?
- Do Guile! Ele é o principal, não é?
- Tá maluco? Só naquele filme horrível; americanos idiotas.
- Quem é, então?
- Ah, isso é óbvio. Quem é que está em todos os jogos da série, desde o 1 até o 3, passando pelo Alpha?
- Não sei. Quem?
- Ele mesmo! E o Ryu também.
- Quem?
- Ken. – o rosto de Jet mantinha sua expressão inquisitiva – O Ken, sabe? Porra, kimono vermelho, igual ao Ryu, caralho, você joga com ele!
- AAAAAAAAHHHH tá!
- Então. Ele e o Ryu é que são os principais, a estória é sobre eles.
- Mas qual é a da estória, que o Bison tem a ver com isso?
- Sei lá do Bison, ele não me interessa; o que eu sei é o seguinte. O Ryu é órfão, o Ken é filho dum miliona americano que foi mandado pro Japão pra ser disciplinado quando criança. Treinaram juntos, cresceram juntos, blá blá blá, desde sempre foram amigos e desde sempre competiram pra saber quem era o melhor. Quando ficaram maiores, Ken voltou pra casa porque tinha uma empresa multinacional e o amor da sua vida esperando por ele. Ryu por outro lado só tinha como objetivo seguir em frente e lutar, cada vez com alguém mais forte, então viajou o mundo inteiro pra procurar esse alguém, sempre evoluindo, sua mente voltada apenas para a luta. Meio zen-budista.
- Meio igualzinho a alguém que eu conheço.
- A um monte que você não conhece também. Ele é tipo, um artista marcial ideal; não busca fama, não busca força, não busca riquezas, busca só ser melhor.
- Mas ele nunca vai ser o melhor!
- Existe uma diferença enorme entre o que eu disse e o que você disse, moleque. Preste atenção.
Jet parou com um gole de coca ainda por descer a garganta.
- Hein?
Moe olhou o relógio de pulso.
- Cê não tem que voltar pra casa, não?
- Que horas são?
- Nove da noite.
- Putaqueopariu! Já!?
- Tempus fugit.
- Quê?
- Pelamordedeus, moleque, eu me dou o trabalho de aprender a citar em latim só pra me fingir de intelectual e você nem pra admirar! Vá arrancar o Tao daquela porra daquele videogame e dar o fora daqui, vá! Tenho uma loja pra fechar.
- Será que ele vai querer voltar a pé?
- Lógico que vai. Do jeito que é doido.

* * *

posted by Heitor 5:04 PM
segunda-feira, maio 26, 2003

 
TAO – A FONTE DE TUDO


“Suavizai o corte
Desfazei os nós
Diminuí o brilho.
Deixai que as rodas percorram os velhos sulcos.”


- De novo. – Tao repetiu, friamente.
Jet já estava de saco cheio, torrado mesmo. Não agüentava mais. Fazia 5, 6 horas que eles estavam ali no quarto, com o mesmo cartucho velho de Street II, o mesmo joystick estilo fliperama, fazendo shoryuken atrás de shoryuken, atrás de shoryuken, atrás de shoryuken. Jet teve dificuldade a princípio, mas em pouco tempo estava dando voltas pela tela executando o movimento ascendente em diagonal. Chegou a estabelecer o antes impensável recorde de 156 shoryukens seguidos.
Então sorriu orgulhoso da própria façanha, mas tudo que Tao fez foi assumir os controles do outro lado e desferir uma rápida voadora, seguida de um combo devastador no Ken controlado por Jet.
- Ei! Por que cê fez isso?
- Por que eu fiz? – o outro olhou, severo. – Por que você não me acertou um shoryuken?
Jet refletiu por alguns segundos.
- Eu sei lá.
- Porque é burro, deve ser. Você está aqui há horas treinando shoryuken, pra que você acha que serve esse golpe?
O outro não respondeu.
- Pra quando vier um sujeito pulando pra cima de você, cê nem pensar no que fazer, enfia um shoryuken no bicho e o ataque dele já era! É pra isso! Agora de novo.
- Não.
Tao demorou um pouco para absorver o conteúdo das palavras.
- Não o quê?
- Chega disso, eu vou pra casa. Meus olhos tão doendo.
- Tá certo, então.
Jet levantou-se e saiu pela porta, o outro nem ao menos se virou para se despedir, ficou lá, jogando, do mesmo jeito. Como se não desse a mínima.

* * *

Mas não era bem isso. Jet já tinha aprendido, em poucos dias de convivência com Tao, que ele era uma das pessoas mais gentis e bondosas que jamais iria conhecer. Qualquer dureza que viesse dele era por necessidade ou por proteção. Por algum motivo, ele achava melhor ser um professor durão ou um jogador calado e misterioso, do que ser risonho, alegre e bem humorado como costumava ser em tudo o mais.
Jet perguntava-se o porquê disso. Na verdade, perguntava-se muita coisa, como, afinal, quem era ele? De onde veio? Quando, e como, aprendeu a jogar? E principalmente, por que jogava tanto, por que levava tudo tão a sério?
Tinha mais quatro dias de férias para descobrir.

* * *

Jet chegou no apê de Tao, dia seguinte, e deu de cara com ele na porta, esperando ansioso.
- Pelo visto tu só é Jet no jogo mesmo, hein, atrasado? – o outro retrucou. – Pensa rápido!
Arremessou a mochila em direção ao garoto, que a apanhou por reflexo apenas para quase derrubá-la em seguida, pego de surpresa pelo peso tremendo dela.
- Que diabo tem aqui dentro?!
- Vamos andando. – Tao novamente pareceu ignorá-lo. – Tem muito chão pra chegar onde a gente vai.
- Peraí, onde a gente vai!?
- Longe.
- A pé?!
- Não, Pedro Bó, no meu avião invisível. Agora corre antes que você se perca de mim. – Jet tropeçou e quase caiu. – E tome cuidado com essa mochila, porra!
- Mas porque a pé?
Tao nada respondeu. O silêncio permaneceu por alguns segundos.
- Isso é tipo um desses testes de filme? – perguntou o garoto.
Novamente nenhuma resposta.
- Que nem Karatê Kid, ou Dragon Ball? Vamos andar, andar, e eu vou, sei lá, ficar mais forte?
Tao parou.
- Mais forte?
- É! Tipo, me acostumar com o peso e –
- Você não quer aprender a jogar videogame?
- Quero.
- Então que que carregar uma mochila tem com isso?
- Hã... sei lá.
Dizendo isso, voltou a andar. Jet o interrompeu, mais uma vez.
- Mas então, porque eu tô carregando isso, porque vamos a pé? É alguma dessas suas coisas de iluminação interior?
- Iluminação? Não...
- O quê, então?
- Motivos muito mais nobres.
- Qual?
Tao parou de novo.
- Primeiro, vamos economizar a passagem de ônibus. E segundo, você vai aprender a valorizar as coisas dos outros.
- ...Vou é?
- Ô, se vai.
- Por quê?
- Porque se tiver um arranhão no que tem aí dentro quando eu for abrir, eu vou arrebentar a sua cara tão feio, mas tão feio, que o pessoal vai confundir ela com a sua bunda. Agora, acelera!

* * *

Realmente era longe.
Tao morava no Leblon. Eles caminharam até o final da (...?), quase na rua Acre, centro da cidade. Uns... 15 kilômetros? 20? 57? Parecia que não ia acabar nunca. O sol subiu até o pino, desceu, já estava na metade da descida quando eles chegaram; não havia economia de passagem de ônibus que justificasse aquele martírio.
- É aqui. – disse Tao, e ao ouvir isso, Jet carinhosamente depositou a mochila na calçada, apenas para quase desabar ao lado dela em seguida.
Tinham chegado num fliperama aberto, nem escondido, nem em destaque, beirando a esquina e mal conservado feito o diabo. O teto era de uma cor laranja amarelada e esburacada por anos de desdém que ficavam claros para qualquer passante. Não havia lá nada que fosse ao menos minimamente chamativo: havia o chão, o teto, umas poucas colunas, e a bancada branca onde se compravam fichas. Pouca gente transitava lá dentro, alguns marmanjos, alguns moleques – todos estes de rua. Muitas máquinas vazias.
O homem do balcão sorriu assim que avistou Tao. Era alto, tinha a pele mulata, o rosto redondo e olhos fundos, gastos por olheiras.
- Fala malandro! – cumprimentou, abrindo os braços. – Cê sumiu!
- Fala, Moe.
- Como vai essa vida de merda?
- A mesma merda. – apertaram-se as mãos. – E a tua?
- Uma bosta.
- Trouxe o negócio aí.
- Quê?! – o tal Moe parecia genuinamente surpreso. – Tá de sacanagem!
- Tô nada. Jet! – o garoto levantou-se, dolorido. – Traz a mochila! – e foi com um certo pesar que ele levou-a mais uma vez às costas, adentrando a loja.
Havia um certo contraste entre as máquinas velhas e novas que habitavam os cantos do local, aparentemente colocadas lado a lado com o propósito de oporem-se ainda mais. Os moderníssimos jogos de pistola, com telas absurdas de mais de 50 polegadas, encostavam-se em monitores beirando às 20, com jogos muito mais velhos que Jet e palhetas já gastas mostrando apenas 16 cores. Pac-Man. Double Dragon. E havia meios-termos, também, alguns consoles já ultrapassados, mas que não completavam ainda meia-dúzia de anos.
- Temos que estrear isso! Ah, mas temos que estrear, mesmo! – alardeou o tal Moe. – Raspa fora, daí, moleque, vou te dar coisa melhor pra jogar daqui a pouquinho!
Afastou um garoto de uma máquina velha de corrida, de cujo nome Jet jamais se lembraria.
- Que diabo tinha aí dentro, Tao?
- Espera pra ver, mané.
- Diz logo, cara!
- Ah! Agora cê tem pressa, né?
Calaram-se. Tao sorria um sorriso tremendamente largo, e tudo que seu “aprendiz” fazia era observar muito, muito intrigado, enquanto Moe sacava para fora da mochila um conjunto de monitor vinte e poucas polegadas, sticks e botões coloridos, e uma placa de computador de tamanho esdrúxulo, para a seguir colocá-lo no lugar da máquina que o garoto jogava, com cuidado e carinho dignos de uma obra de arte.
Como o sujeito devia ser um bom técnico de hardware, ou pelo menos um bom instalador de jogos, mesmo com toda a cautela que teve não levou mais de 10 minutos para ligar a tomada novamente – tempo estendido exponencialmente pela curiosidade e impaciência natural de Jet, que chegou a roer as unhas do dedo mindinho e do indicador quase inteiras.
O velho monitor demorou um pouco para adquirir nitidez, o bastante para que uma pequena multidão, incluindo todos os presentes na loja, se aglomerasse ao redor dele. Mas quando o fez, mostrou nada mais que a tela de abertura do velho Street Fighter II, o mesmo que Jet tinha jogado nas últimas duas semanas, 6 horas por dia.
- Como assim? Esse trabalho todo por um jogo velho de merda?!
- Sh. Calaboca. Eu quero ver isso. E quero ouvir também. – retrucou Moe, aumentando o volume da máquina ao máximo em seguida.
- Ver o quê? – Jet sussurrou de volta, incapaz de responder em voz alta. Tao reprovou-o com um sorriso severo.
Permaneceram todos em silêncio respeitoso, observando as ainda levemente turvas imagens de abertura do jogo, que se transformaram em uma luta demo e, por fim, numa tela de recordes por pontos. Aí houve rebuliço geral, pois o nome no topo da lista era o de MOE, com uma quantia de pontos inimaginável; o segundo, não muito atrás, era o de TAO, o terceiro, e quarto, repetições dos dois primeiros nomes, e o quinto por fim era de um tal BIL.
Os olhares de todos voltaram-se para o dono da loja, que sorriu quase melancólico.
- Putaqueopariu... – Jet deixou escapar e, dirigindo-se a Tao, perguntou. – Esse cara barrou você?! Você?! E fez um milhão de pontos!!?
- Ninguém é melhor que o Moe pra bater na máquina. Ele faz perfect que nem jogador de boliche profissional faz strike.
- Porra, quantos perfects você precisa pra fazer um milhão?
- Todos.
Jet demorou a absorver aquilo.
- Quê?
- Todos. De preferência bem rápido. Esse score aí foi um jogo perfeito. O meu logo embaixo foi o melhor que consegui; defendi uma magia do Bison e levei um soco do Ken.
- Te custou 90 mil pontos, mané. – completou Moe. – Mas bater na máquina é fácil.
- Não como você faz. – Tao retrucou.
- Há! Você diz isso pra me agradar. Mas tu e o Bil viviam me enfiando a porrada nessa máquina babaca. – pigarreou. – Ele principalmente. Olhaí.
A tela agora mostrava recordes de vitórias consecutivas, e o nome Bil pairava acima de todos, ao lado do impensável número 99.
- Ah, parei. Ele teve 99 vitórias seguidas? – Jet já quase brincava com a coisa.
- Mais. – interviu Tao, seco. – O contador parou de registrar, e ninguém agüentava mais contar... mas deve ter chegado numas 200.
Jet pensou um tempo antes de responder com algo que julgou inteligente:
- Mas não quer dizer muito... em quem ele bateu?
- Ah, muita gente.
- Mas principalmente em nós dois. – completou Moe, meio rindo, meio envergonhado.
- 200 vezes seguidas??! Em você!?! – Jet saltou para trás.
- Faz tempo, isso. – Tao quase murmurou, mais lembrando do que respondendo.
- E daí?! Ainda é você! Putaqueopariu, quem era esse cara?
Tao então se virou para ele e, numa serenidade absoluta, respondeu.
- Meu mestre.

* * *

continua...
posted by Heitor 8:55 PM

 

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Nem todo mundo pode parecer sinistro. A maioria fica apenas... ridícula.

Bem-vindos! O blog mudou de hospedeiro, mudou de cara, largando aquela coisa de template temático, mas continua a mesma parada tosca.

BONILHA BLOG não é um projeto, não é uma experiência, é apenas um lugar onde posso escrever publicamente o que quer que ache interessante, para quem quer que ache interessante poder ler.

 

QUEM É VOCÊ?

Heitor Coelho, na casa dos vinte, atualmente no limbo entre bacharelado e advocacia, magalômano, ponto focal de convergência de interesses esdrúxulos, frequentemente confundido com Hector Bonilla, acredita em dialética, astrologia e robôs gigantes.

Se você tem algum comentário sobre esse blog, ou encontrou algum erro, link defeituoso, etc., por favor mande-me um mail

BREVE:

Xenosaga: Episode 2! Haradrynn! Tao 2! E mais referências pseudo-intelectuais do que você poderia contar nos dedos!

CONTOS DO BONILHA!

O velho Kryptus parece meio cansado... já faz 8 anos q ele estreou um conto meu.

Para você ler online, ou baixar para ler no seu computador. Um estoque permanente de toda minha "extensa" obra literária!

PS: Parei com aquela porcaria de legenda, aquilo dava muito trabalho...

CONTOS:

"APRENDIZ DE FEITICEIRO"- este é dos velhos. Magos infestam um futuro apocalíptico(q, aliás, já passou;-)).

"O ARNALDO É LOUCO" - crônica escolar, sobre meu antigo professor de matemática.

"OS DIAS NEGROS DE KRYNN" - ainda mais velho, meu primeiríssimo. D&D puro, se vc num gosta, fique longe.

"DEZ REALIDADES" - coletânea de dez pequenos contos ligeiramente interligados.

"DESCRENÇA EM 6° CÍRCULO" - menos D&D q Dias Negros, mas muito maior. Velhos companheiros de aventura reencontram-se, agora como inimigos.

"É, MAURÍCIO..." - o trágico fim de Maurício Razi?

"A TERRA DA DEUSA FURIOSA" - uma expedição rumo ao desconhecido e um final inusitado.

"NÉVOA PRATEADA" - a sequência de "Aprendiz de Feiticeiro".

"MOLHADO" - um assento de Ônibus molhado e muita realidade consensual.

"MATRIZ" - pequena sequência de estórias passando-se na Casa da Matriz, aki no Rio.(antes q vc pergunte, com personagens fictícios)

"RANDÔMICOS" - a origem de Gericault, andarilho dos olhos prateados, e um breve debate sobre Destino, Acaso e Morte.

"KÉRAMUS E O POTE DE VENTO" - a história do mago mais poderoso de Heshna, e de como ele consegiu encher um pote com vento.

"JUSTIÇA" - conto policial com Shade, um detetive levemente amargo.

"MUUNAITE III, DE PARTI" - 2 amigas batem um papinho na festa mais boyplay da cidade.

"TAO, O NOME" - conheça TAO, o maior jogador de videogame de todos os tempos.

"O SONHO DE TAKASHI" - o primeiro conto lodista! Pode Takashi lembrar-se de seu sonho e sua idéia ao mesmo tempo?

"PISANDRO" - um professor de História relembra sua juventude, seu amor perdido, e suas desavenças com Deus e o Destino.

"O EVANGELHO SEGUNDO K. C." - dois senhores discutem música e religião num futuro próximo. Bom, não tanto.

"NADA DEMAIS" - Nada demais mesmo. Juro.

"TAO - POR QUE LUTAR" - Tao, o rei dos games, revela algo do seu passado, e de como começou a jogar sério.

"BRINQUEDOS" - Os brinquedos de Joãozinho eram especiais: podiam falar e até mesmo brincar sozinhos! Ou será que eles estavam trabalhando?